São 18h30… chegaste a casa... Já tinha dado banho ao C. (como o tempo passa, ainda “ontem" o vimos chegar ao nosso mundo e já está quase a fazer 3 anitos) e estava a preparar o jantar… com o carinho e dedicação de sempre… sei que chegas cansado da fábrica...
Entraste acelerado, notei-o pela forma como fechaste a porta de casa. Ouvi o som das chaves atiradas com uma ponta de raiva para cima do móvel de pinho no hall… Não falaste… Sentaste-te no sofá… mudaste de canal... (ele estava a ver os desenhos animados)... O C. começou a chorar... Normal, estava a ver os desenhos animados... (ai o refogado!)...
Mexo o refogado… já estava distraída, a pensar no tempo… Pela porta da cozinha entram todos os sons dos teus gestos… do que fazes… abres o bar e serves-te… O dia deve ter sido mesmo mau… (Ainda nem disseste olá…)
- Olá! Como foi o dia na fábrica?
- O costume…
O C. cala-se…
Passa-se meia hora… tens a mesa posta e o jantar servido… chamo-te… demoras sempre o teu tempo… não gostas de vir assim que te chamo…
Sentas-te à mesa e lembro-me de quando passaste uma semana em casa dos meus pais… já lá vão 5 anos… íamos anunciar o casamento… Deste-te logo bem com o meu pai… falavam de caça e de futebol… Nunca gostei nem de uma coisa nem de outra, mas não interrompi nunca nenhuma das conversas… gostava de vos ver a falar...
- O que é isto?
- É arroz com passas e lombinho com cogumelos… tirei de uma revista.
- Eu não vou comer isto… Que raio!
Levantas-te furioso… vais para a sala… serves-te… Deves ter tido mesmo um mau dia… Queria contar-te o meu… Também foi mau e queria um pouco daquela tua atenção… aquela que já não sinto há quase dois anos… onde andas?
São quase 21h. A cozinha já está arrumada. Vou deitar o C. e talvez te faça companhia na sala, mas só um pouquinho… tenho a roupa por apanhar e passar a ferro… e acho que já tenho uma máquina de roupa escura para fazer…
O jogo deve estar a correr mal, pela quantidade de palavrões que te oiço dizer… já foste ao bar umas quantas vezes… o teu dia deve ter sido mesmo mau… deve ter sido como ontem.
Ainda há pouco o C. estava a perguntar porque tinha o braço pintado… (- Pu tem baço pintáu?) tentei explicar que não era pintado, mas uma criança de quase 3 anos não tem percepção das coisas… ainda bem… teria de explicar-lhe que tinha sido apenas uma exteriorização tua de um dia mau… ele não iria perceber… respondi que tinha estado a brincar com tintas na loja…
Vens ter comigo e dizes que tens fome... para te fazer algo que se coma...
- Estou a passar a ferro… Já aí vou…
A tua cara muda… (vou ficar com o braço “pintado” novamente)…
(Ao menos o C. já está a dormir, não tem de te ver a “pintar” o meu braço… as minhas costas… as pernas…)
Mas eu percebo… o teu dia foi mau… e eu estou aqui para ti… também precisas de libertar o teu dia mau... sou tua esposa para o bem e para o mal...
Há quantos meses não tens um dia bom?
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Em 1999, o Ano Europeu Contra a Violência sobre as Mulheres, 3358 pessoas foram maltratadas dentro das suas próprias casas em Portugal.
Os números da
APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vitima) revelam um crescimento de 15 por cento em relação ao ano anterior, mas a verdadeira realidade continua oculta pois esta é ainda uma questão considerada tabu.
Dos 4782 processos analisados pela APAV referentes a vários tipos de crime, 70 por cento inscrevem-se como violência doméstica.
O cônjuge/companheiro é o responsável pela maioria dos casos de maus tratos – 66,6 por cento do total. A ameaça/coacção representa 13,6 por cento dos processos.
As vítimas são sobretudo mulheres, seguidas das crianças, não sendo possível fazer um retrato tipo dos agressores. Tratam-se de pessoas tidas como normais e que se mostram bastante delicadas em público.